sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Confissões do suposto "mau da fita"

Sobre o filme? Como toda a gente teve opurtunidade de ver, o filme está brilhante. Todo o efeito secundário de choque previamente pensado, teve sucesso.
A realidade para muitos choca e realmente para muitos... Chocou levando à pena! O único problema é que a necessidade humana não necessita apenas de pena. Organizações nacionais Brasileiras como o "Ministério dos Esportes". " BAC - Base de Apoio à Cultura", "Unicef e Rede Globo" entre outros, demonstraram não ter nem pena nem coração.
Para perceberem melhor ao que me referiro que até aqui tudo está um pouco vago, leiam esta carta que o director de "Cidade de Deus", Fernando Meirelles escreveu para alguns amigos e jornalistas:



"Companheiros,
Tem um velho provérbio chinês, ou pseudo-chinês (talvez seja tirado destas revistinhas de auto-ajuda), que diz:
A Arte é um dedo apontado para a Lua.
Olha a Lua,
não o dedo.

'CDD' ('Cidade de Deus') é um filme que aponta para uma lua muito objetiva, mas parece que a atenção geral, por algum processo perverso em nossas cabeça, só consegue olhar para o dedo: o filme. E agora para a estatueta que ele possa vir a segurar. Enquanto isso, a lua está lá. Esquecida. Em janeiro do ano passado, achei que tivesse recebido o melhor prêmio que um filme pode receber. O governo federal, estadual e a prefeitura do Rio decidiram criar vários projetos sociais na Cidade de Deus para que, como um modelo, se espalhassem depois por outras comunidades. Na época, o então secretario Nacional da Segurança Pública, (Luiz) Eduardo Soares, disse: 'Queremos mobilizar governos, instituições e a sociedade para reverter a violência. O filme mostra o lado sombrio de CDD. Nós vamos mostrar o lado luminoso.' Comemorei eufórico. Eis alguns dos principais projetos que vieram com esta boa notícia:
- Ministério dos Esportes: construção de uma fábrica de material esportivo.
- Ministério da cultura: BAC - Base de Apoio à Cultura.
- Ministério das Cidades: processo de documentação e posse dos moradores.
- Unicef e Rede Globo: construção do espaço Criança-Esperança.
- Governo do estado: doação do espaço para a construção do Criança-Esperança e do BAC.
- Prefeitura: criou uma séria de projetos, incluindo uma ação forte da Secretaria de Habitação.

Houve uma grande mobilização dos moradores, muitas reuniões, viagens a Brasília, mas, aos poucos, cada órgão foi saindo de fininho. Um ano depois, nada aconteceu. Na época, anunciei com orgulho esta decisão do governo em todas as entrevistas para imprensa internacional que dei. E não foram poucas. 'El País', da Espanha, mandou um jornalista e deu uma página inteira sobre o assunto, com chamada na capa. Hoje, quando algum jornalista internacional se lembra disso e me pergunta como anda o projeto, sou eu quem sai de fininho. Digo que tudo está acontecendo a seu tempo. Mentira do bem, para não sujar a imagem do país. Quando não há perspectiva de futuro, o crime é de fato uma opção a se considerar. O que há conosco? É tão óbvio que o investimento social é a melhor forma de combater a violência e a única maneira de se construir um país. Se não for também a mais barata a longo prazo. Até a Secretaria de Segurança deveria investir em escolas ou cursos profissionalizantes e não apenas em armas e viaturas. É incluindo e não só reprimindo que se resolve o problema. Todo mundo sabe disso. Não vou mais chover no molhado.

Cada vez mais torço para que o Peter Jackson leve mesmo aquela estatueta. Acho que sentiria vergonha se eu ganhasse. Coloque-se no meu lugar e pense na população de CDD assistindo à transmissão. Você há de se sentir envergonhado comigo.

Fernando
De Londres, numa noite de insônia.
PS.: Costumo ser quase idiota de tão otimista, mas às vezes fica difícil. Vai ver que eu só estou é cansado. Mas mesmo assim a lua está cheia."