terça-feira, junho 15, 2004

A vida

O meu nome é Alberto, vasculho de profissão. Sou de Lisboa, esse Éden das beatas e das folhas secas. Queria contar-vos a minha história na totalidade, mas pagaram-me para vir narrar apenas um episódio específico que se passou há uns vinte anos atrás, antes de eu enveredar por esta maravilhosa profissão que é varrer ruas.
O que aconteceu foi bastante simples. Eu tinha acabado de completar o quinto ano na Faculdade de Letras de Lisboa, curso de línguas e literaturas modernas. Ambicionava o mundo, como todos naquela idade e pretendia fazer uma revolução no ensino: queria pôr os alunos a pensar. Sempre achei que pensar era essencial aos putos, para que eles pudessem desenvolver uma capacidade critica e de raciocínio que se coadunasse com os futuros cargos que iriam exercer um dia. Fui a várias entrevistas de emprego. Tudo parecia correr muito bem, até à pergunta final: "Qual é o seu método de ensino?". Dizia sempre que iria revolucionar o sistema, pôr os alunos a pensar. Chegaram a responder-me que isso já estava muito visto, que os alunos já pensavam demasiado. Não desisti. Enfrentei gargalhadas, sarcasmos, ironias. A minha vida tornou-se num verdadeiro inferno. Sem trabalho e sem dinheiro, vagueava pelas ruas de Lisboa. Tentei uma última vez, numa escola duma zona que acabara de crescer e que é hoje um conglomerado de apartamentos com uma circular ao meio, mais precisamente a Segunda. Fui leccionar para Telheiras. Os miudos revelaram-se todos um desastre completo. Preguiçosos, lentos, burros até. Vi de tudo. Foi então que se operou em mim a revolução. Era preciso castigá-los, pô-los a trabalhar. Sem trabalho não se evolui. Fui subindo na vida e cheguei, há 15 anos atrás, ao Ministério da Educação, no qual iniciei um projecto verdadeiramente sádico ao qual chamei "Projecto EN". Visava levar à loucura todos os alunos que não trabalhavam, que nunca pensavam por si. 10 anos depois, já eu andava a varrer ruas, foi implementado. Hoje dão-lhe um nome pomposo: chamam-lhes exames nacionais e alargaram-nos ao país inteiro. Era só isto. Qualquer imprecisão na história deve-se ao facto de me terem prometido 50 Euros e me terem pago apenas 25. Bem desconfiei que aquele puto andava no 12º.
Bem hajam.