domingo, agosto 29, 2004

A Embarcação

Não tenho quaisquer problemas em afirmar o meu apoio no que toca à despenalização do aborto. Faço-o, sobretudo, porque acredito no indivíduo e na sua liberdade e não encontro na prática abortiva qualquer violação dos direitos de outrem, único impeditivo do exercício da individualidade de cada um, tendo naturalmente em conta a não humanização do feto, questão sobremaneira polémica e discutível, a ponto de ainda estar muito longe a obtenção de um acordo unânime sobre se um feto com 6 semanas e meia pode, ou não, ser considerado um ser humano.

Recebi, por essa razão, de forma efusiva, a notícia da breve chegada a Portugal do “Barco do Aborto”, um projecto criado e instituído por uma holandesa com o apoio de um hospital e do Estado holandês. A razão é simples: admiro a genialidade da coisa e aplaudo a intervenção de um projecto bem mais viável que as clínicas abortivas nascidas por entre tufos de cegueira súbita, quais ervas daninhas no seu expoente máxima.
A genialidade da ideia reside sobretudo na forma como é posta em prática: o barco, devidamente equipado para práticas abortivas, aporta em Lisboa, carregando, dentro de si, as mentoras do projecto, bem como uma equipa médica devidamente qualificada. As mulheres que pretendem fazer um aborto tê-lo-iam já comunicado, por meio de um número de telefone, aguardando unicamente a chegada do navio. Após preencherem o navio, este desloca-se para águas internacionais, ficando assim sob a jurisdição única e exclusiva do país de origem, ou seja, o Estado holandês, no qual o aborto é uma prática permitida. Aí, dar-se-ia o desenrolar do processo, devidamente acompanhado pela creditada equipa médica.

O Estado, na pessoa máxima do Ministro da Defesa, após demorada reflexão, resolveu impedir a entrada do barco em águas territoriais portuguesas. As razões pecam por se apresentarem “dúbias, muito dúbias”, pese o conservadorismo do líder do Partido Popular nada ter a ver com esta decisão. Foi, vários referiram, única e exclusivamente “judicial”, não tendo existido qualquer reflexo político na mesma. Terá sido também alegado o desconhecimento das condições sanitárias por parte das brigadas de fiscalização sanitária portuguesas, bem como a distribuição de um medicamento cuja venda está interdita em Portugal, medicamento esse que seria distribuído apenas em águas internacionais. Permitam-me portanto gargalhar e aplaudir a regressão diária da tosca mentalidade portuguesa. Fazem-se abortos clandestinos, dentro e fora do País. Facto. É considerado crime fazê-lo, de acordo com a legislação portuguesa. Facto. Um barco devidamente equipado desloca-se a Portugal, permitindo a várias mulheres fazerem-no de graça e em segurança. Facto. O Governo, apoiado nas suas convicções de Direita, proíbe a sua entrada. Facto. Portugal é um país governado por mentalidades retrógradas, apoiadas unicamente em convicções pessoais. Dogma.