quinta-feira, dezembro 18, 2003

Caros Bloggers,

dia 23 do presente mês vou ausentar-me temporariamente do país. Compromissos germanófilos, sabem como é. Portanto, desejo a todos um fabuloso natal. Na passagem de ano já estarei de volta (caso o avião não resolva "aterrar" antes do tempo) e poderei aí transmitir os votos de felicidade coincidentes.
Para terminar, queria deixar aqui mais um exercício de pseudo-prosa, desta vez com uma forma não muito comum e pela qual eu não nutro uma imensa simpatia, mas que foi necessária por forma a conferir expressividade à, chamemos-lhes assim, narrativa. Isto tudo, ressalve-se, ao som do divino Comboio Azul de John Coltrane.


Carta

Saboreio essa terna delícia que é a vida.
As minhas papilas sensitivas exaltam-se perante a suavidade do gosto, a doçura do paladar, a grandeza do momento.
A sensação deixou de ser única... já é somente inigualável.
Nesse segundo, tudo se alterou. A besta que fui é agora a pessoa que sou. A bílis que corria lenta e furiosamente por todo eu é agora nada mais que apenas nada.
Pouco depois, acabo de morrer. A morte já nada tem que seja doce, agora apenas um sabor podre percorre o corpo.
Enfim, morri. Destinado aos seres como eu e aos diferentes de mim, a morte.
Não posso dizer que seja diferente da vida, é apenas sentir sem sentir nada, saber que eu sou sem ser eu o que quer que seja, conhecer à minha volta todo o vazio que se instala.
E uma solidão....
Vou acordar.
Vou ser rico.
Vou ser actor, Ser inteligente, ser belo, ser alguém mas não ser eu.
Foi este que me disse, este precisamente que me matou.
Não quero ser nada disso, rejeito a ideia.
Procuro um sujeito que já fui. Jovem, belicoso, ignorante. Nada.
Nem uma só gota do tal adulto ferido pela juventude, nem do velho sarado pela idade. Nem uma só gota do meu sangue.
Nem tu., nem eu, nem nós, pura e simplesmente nada.
Acabei, finito, kaput. Acabou.
Não é morrer que me importa, pior é acordar num sono que não é meu, que não é nosso averiguando a tua ausência, a tua solene, perene e eterna ausência.
Sou rico.
Sou inteligente.
Belo, um pouco.
Sou amnésico.
Esqueci-me, esqueci-te, esqueci-nos.
Agora vivo outra vida, vivo outra realidade, vivo outra gente.
Nós não voltarei a ser. Serei eu e será outra, ela e eu, nós nunca.
E da terna delícia que era a vida, resta o sabor amargo do fim eterno,
Resta esperar por ti a vida inteira.
Resta esperar que sejas minha mãe
Para que me doa apenas arrancar os olhos.